SEIDI SÃO PAULO

O que vier na cabeça, sem revisar os textos.

Wednesday, October 18, 2006

 

O Homem de 52
Conto - Seidi Kusakano


Eu já tenho 52 anos e não ousaria fazer grandes manobras.

Dois filhos adolescentes, uma esposa que não me respeita e um emprego de analista de sistemas. Nada mais do que uma alternativa de sobrevivência da qual arrasto por mais de 20 anos. Achava que podia ganhar o meu primeiro milhão aos 30 anos. Quando comecei, era promissor. Hoje existe a grande concorrência com os novatos, que já mexiam no computador com a chupeta na boca, somados de experiência internacional, MBA, 3 línguas fluentes.

A grande verdade é que estou estagnado. Com dois filhos para criar, não consigo ter o luxo de passar um ano sabático em Massachussets, fazendo aprimoramento em MIT. A minha mulher trabalha - bufando todos os dias - como secretária de uma multinacional coreana, falando inglês o tempo inteiro com os expatriados de cultura totalmente diferente. Estamos apenas apagando o incêndio do cotidiano. Não temos metas grandiosas. A única felicidade é vermos os nossos filhos crescerem de forma digna. E a nossa sorte é que ao menos não estamos desempregados.

Porém, a vida nos traz algumas surpresas ao longo da sua extensão, como se algum ser superior nos pingasse, de tempos em tempos, oportunidades (às vezes invisíveis) para darmos uma guinada na nossa pacata rotina.

Explico. Eu tenho uma paixão pelas artes plásticas. Sei que não combina com um analista de sistemas, porém minha tia era artista plástica de uma certa notoriedade e acho que herdei algo dela nesse quesito. Eu desenho pessoas com boca bem aberta e depois colo um monte de rolhas, de vinho mesmo. É uma arte conceitual, e quero expressar o sufoco das pessoas. Também, uma alusão à imposição da sociedade perante a moda. O vinho está na moda. A profissão de sommelier já existia, mas hoje pipocam cursos profissionalizantes, livros, etc. Enviava essas obras a concursos. A minha mulher nem ligava mais.

No ano passado, tive uma grande notícia: eu recebera o prêmio revelação de um concurso artístico realizado no sul do país. Pulei como uma criança e disse a minha mulher. Respondeu apenas, que ótimo, parabéns, sem muito entusiasmo. Mas tudo bem, poderia estar trilhando uma nova carreira, de um artista plástico bem sucedido. Essa opção abandonada desde a primeira gravidez da minha mulher, quando estávamos ainda na faculdade, apenas como namorados empolgados. Meus filhos vêem as minhas obras como aberração, aliás têm até vergonha de dizer aos amigos que o pai cria aquelas coisas. Um dia entenderão.

Algumas revistas especializadas e jornais daquela região vieram me entrevistar. Tirei fotos ao lado da minha obra. Algumas saíram com a minha mulher - ela insistia em posar ao meu lado. Ela é do tipo que devora colunas sociais, uma Ema Bovary. Ela até estava animada, dava empurrão para que eu seja mais vendedor – você tem que ser pavão, circular nas festas, galerias – mas não é o meu negócio, esse de me prostituir. Ainda acredito que se a obra for boa de crítica, automaticamente venderia. Ah, se a minha tia estivesse viva, ela estaria contente, me dando conselhos construtivos, não esses palpites amadores, como os da minha mulher.

Um breve momento de esperança. Porém, voltamos novamente a nossa rotina de assalariado. Eu continuo com arte-conceito, já em outra fase. Nunca mais recebi nenhum prêmio. E nunca vendi sequer um quadro. Apenas consegui fazer uma permuta com um bar, onde deixaram minha obra na entrada, em troca de consumo no bar, durante um mês.

Recentemente tive uma oportunidade de encontrar um grande artista plástico na missa de 20 anos de falecimento da minha tia, e pude conversar com ele rapidamente. Comentei que eu havia recebido um prêmio e que a aceitação dos críticos fora muito boa, na época. Porém ele me disse:

“Obra boa de crítica nem sempre vende. Acorde filho. Você tem que ser antes um bom vendedor. Das suas obras e da sua imagem”.

A minha mulher estava certa. Porém, já é tarde. Não vou me submeter a coisas que teria de ter feito aos 20 anos.

Caminho rumo à estação do metrô, para enfrentar mais um dia na frente do computador, à espera da minha aposentadoria, daqui a dez anos.

Foto: boxman.awazo.com/.../2006/04/businessman.html

Comments:
Parabéns pelo conto, bem legal!
Pois é, muitas vezes, o "artista" se preocupa mais com política do que com arte, infelizmente.
Abs!
 
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